Uncategorized

Filipe Marques Mangerona expõe sua visão crítica acerca dos planos de recuperação que preveem início de cumprimento apenas após o trânsito em julgado da decisão homologatória

12968035_1779499128951429_576479721919076454_o

No artigo “Trânsito em julgado e a recuperação judicial”, publicado no jornal Valor Econômico, nosso diretor Filipe Marques Mangerona expõe sua visão crítica acerca dos planos de recuperação que preveem início de cumprimento apenas após o trânsito em julgado da decisão homologatória.

Abaixo, segue íntegra do artigo.

Trânsito em julgado e a recuperação judicial

por Filipe Marques Mangerona

Na vivência das Recuperações Judiciais, é comum depararmo-nos com planos que preveem o pagamento de créditos sujeitos ao concurso de credores em longo prazo; situações que, por vezes, assemelham-se a um financiamento imobiliário.
Alguns desses planos, além do extenso período de pagamento, regulam um intervalo de carência de meses ou anos, regrando a vida do cumprimento do plano em tempo ainda maior.
Além disso, observamos que alguns planos dispõem de cláusula que condiciona o início de seu cumprimento ao trânsito em julgado da decisão concessiva da recuperação judicial. A inserção de tal dispositivo no plano nos leva a uma reflexão maior, sob o prisma macroeconômico do negócio.
Em vigência desde 2005, a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LRF) tem por objetivo principal a superação da crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e do interesse dos credores; é o que reza o artigo 47 da LRF.
Assim, a propositura da ação de recuperação judicial pelo devedor, pelo cônjuge sobrevivente, herdeiros do devedor, inventariante ou sócio remanescente (art. 48, §1º) – que possuem a exclusiva legitimidade ativa – é uma declaração de que aquela sociedade empresária efetivamente deve na praça.
Isto posto, independentemente das condições de pagamento previstas no plano de recuperação judicial, o fato é que a dívida existe. Ademais, o ajuizamento da recuperação judicial sinaliza que o devedor quer pagar os seus credores; não necessariamente na forma que esses pretendem receber os seus créditos, mas há uma pretensão de extinção da obrigação pecuniária.
Desta forma, seguindo a linha de raciocínio de que (i) a dívida existe, que (ii) o devedor quer pagar e que (iii) os credores querem receber, não faz sentido condicionar o início do cumprimento do plano de recuperação judicial ao trânsito em julgado de sua concessão.
Vale lembrar que o processo de recuperação judicial detém por sua natureza a finalidade de proporcionar o equilíbrio econômico e social, de modo que os benefícios por ele gerados – manutenção da fonte de empregos, de circulação de serviços, de recolhimento de tributos etc. – devem ser acompanhados de uma conduta ética e responsável. Repudia-se aqui o tradicional “jeitinho brasileiro”.
Revestido de aparência supostamente legal, o dispositivo do plano que delimita o começo de sua adimplência ao trânsito em julgado da sentença homologatória, possui manifesto abuso e plena ilicitude em sua raiz, devendo ser coibido pelo judiciário. O art. 187 do Código Civil se amolda perfeitamente a essa corrente quando prevê que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes.”
Nessa ótica, a empresa que se declara devedora e que apresenta um projeto de pagamento, sob o crivo de que sua manutenção no mercado financeiro é econômica e socialmente viável, jamais pode estipular em seu plano que somente começará a cumpri-lo – e aqui se deve ressaltar que começar a cumprir, na maioria das vezes, não significa começar a pagar – após transitada em julgado a decisão concessiva de sua recuperação.
Alguns dos planos que contemplam essa ilegal previsão, também dispõem de cláusulas abusivas e que geram ônus excessivo aoscredores, de modo que esses tenham de se socorrer do duplo grau de jurisdição para o fim de extirpar tais previsões, prolongando, por conseguinte, o início do cumprimento do plano. Assim, caberá aos credores optar pelo aceite das cláusulas abusivas e recuperar seus créditos o mais breve possível ou recorrer ao tribunal para excluir a abusividade e prolongar o início dos pagamentos.
Desconsiderar a antijuridicidade de tal cláusula é um desprestígio ao ordenamento recuperacional e um estímulo a propagação da inadimplência. O instituto da recuperação judicial foi desenvolvido para que as empresas em dificuldade possam utilizar da ferramenta legal para se soerguer e quitar suas dívidas de forma mais objetiva possível, e não para que os empresários mal-intencionados se valham do mecanismo para se fomentar à custa de seus credores.
Não é demasiado lembrar que a teoria da distribuição equilibrada de ônus na recuperação judicial abriga a sistemática de que o plano de recuperação deve ser razoável e detentor de sentido econômico sem o qual se impossibilita o atingimento do benefício social, onde todos ganham.
O país se desenvolve com a doutrina e evolução de sua cultura, de sua responsabilidade e sobretudo de sua ética. Para que isso ocorra, a contribuição dos cientistas e operadores do direito pauta-se na tarefa de filosofar sobre a matéria e conduzir as demandas jurídicas da forma mais transparente e objetiva.

Filipe Marques Mangerona é advogado em São Paulo, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Recuperação de Empresas e Falências pela Fadisp.